Não é difícil perceber que o ser humano se encontra mergulhado em complexidades quase que infinitas, antes menos, hoje mais complexas, mas sempre imerso no caos das múltiplas realidades do dia a dia. Basta pegar uma pessoa qualquer como exemplo para começarmos a enxergar a trama sem fim de relações complexas que podem surgir: o que chamamos realidade nada mais é do que a apreensão da experiência real pela percepção de cada sujeito, percepção essa que sempre estará sujeita aos mais diversos níveis de determinação desse indivíduo que pegamos como exemplo, e essa determinação, por sua vez, pode ser do nível biológico/genético, social/cultural, ou mesmo do nível da psique e das subjetividades humanas.
Ou seja, tudo que existe é infinitamente trançado por causas e efeitos diversos, que causam outros efeitos e esses últimos são as causas de outros e assim por diante, estabelecendo assim uma teia complexa de variáveis.
De alguma forma, parece que o ser humano sabe, mesmo intrinsecamente, que a estrutura universal tem essa dimensão complexa, que muitas vezes foge do alcance dos pensamentos e por isso se torna algo distante, deixado para os especialistas discutirem e pensarem.
No entanto, o objetivo desse texto é diferente.
Defende-se aqui a importância de trazer esse pensar complexo para diversas camadas da vida social, a fim de que seja possível tentar compreender e agir no mundo a partir de sua complexidade.
Conforme a sociedade se desenvolve no decorrer da história, é possível perceber o aumento em seu grau de complexificação, seja nas relações de poder, nos sistemas de governo, na globalização desenfreada, na questão climática, nas diferentes formas e meios de comunicação, nas questões culturais, territoriais, econômicas, dentre diversas outras.
Tomemos como exemplo a questão climática e os problemas ambientais: as interações entre ecossistemas, climatologia e atividades humanas são fatores fundamentais que precisam ser pensados juntos, uma vez que a atividade de degradação ambiental não afeta apenas a natureza, mas também tem implicações diretas na saúde humana, economia e equidade social e por isso necessitam de soluções que integrem os saberes, tanto no âmbito cultural, quanto no âmbito econômico e político.
Ou mesmo a questão tecnológica: seu impacto ético, cultural e social, pensando questões como a privacidade, a desigualdade digital, o impacto na empregabilidade, tanto quanto o uso responsável das mídias, meios e tecnologias de inteligência artificial, a autonomia dos sujeitos (e das máquinas), a dignidade humana e diversos outros fatores, considerando essa interconexão entre tecnologia, diversidade e multiculturalidade do gênero humano, que exige uma análise crítica, complexa e cuidadosa para evitar a imposição de valores específicos em detrimento da pluridiversidade e da multiculturalidade do gênero humano.
Ainda, outra questão possível de abordar a partir do prisma da complexidade é a educação: que deve incluir aspectos emocionais, sociais e culturais, bem como uma aprendizagem transdisciplinar conectando diferentes áreas de conhecimento para proporcionar uma compreensão mais abrangente e contextualizada do mundo, assim sendo possível lidar com a complexidade do mundo, promovendo habilidades como pensamento crítico, resolução de problemas, autonomia e empatia, e buscando o pertencimento em espaços abertos, dialógicos, participativos e horizontais.
Dessa forma, a partir desses exemplos, o que se busca aqui é tornar evidente a necessidade de pensar o mundo através do prisma da complexidade, transformando perspectivas disciplinares que se fecham em si mesmas em pensamento crítico multi, inter e transdisciplinar, que se objetiva não em relações dicotômicas, mas em relações plurais, assim como na abertura do conhecimento.
Um dos principais teóricos que se debruçam sobre o tema da complexidade é Edgar Morin.
Morin nasceu em Paris, em 1921, é formado em Direito, História e Geografia, e realizou diversos estudos em Filosofia, Sociologia e Epistemologia.
É considerado um dos principais pensadores contemporâneos e um dos principais teóricos do campo de estudos da complexidade. Sua abordagem é conhecida como “pensamento complexo” ou “paradigma da complexidade”.
Com mais de 100 anos e ainda produzindo ativamente, é autor de mais de 50 obras publicadas, entre livros, artigos e ensaios. Dentre as principais obras, encontram-se: O método (6 volumes), Introdução ao pensamento complexo, Terra-Pátria, Ciência com consciência, A cabeça bem-feita, e Os sete saberes necessários para a educação do futuro.
Em suas mais variadas obras, Morin busca trazer para o diálogo a urgência da transformação do pensamento. Para ele, a reforma do pensamento é o maior dos desafios da complexidade, e isso se dá uma vez que a sociedade moderna foi construída a partir de um pensamento mecanicista e fragmentador do conhecimento, que buscou, ao longo do tempo, compreender o mundo como uma máquina, em que ao analisar suas partes, seria possível entender seu todo.
Isso, segundo Morin, deu base para o desenvolvimento da sociedade moderna e instaurou no indivíduo e nas estruturas sociais uma necessidade de especialização ou hiperespecialização dos conhecimentos, e o problema que isso pode acarretar é o risco de se fechar em si mesma quanto mais hiperespecializada uma disciplina for.
Essa visão de mundo mecanicista e cartesiana, apesar de ter dado base para o desenvolvimento científico que temos hoje, acaba por ser um tanto limitada ao não levar em consideração as relações entre as partes que compõe o todo, que, como afirma Morin e diversos outros pensadores e cientistas de vertente sistêmica, é bem maior que o próprio todo.
Morin então procura pensar sobre as possibilidades de transformação do mundo a partir da reforma do pensamento e da reforma da educação. Reformar e reinventar a educação implicaria, portanto, em reunir num só propósito as reformas do pensamento, do ensino, da política e da vida.
Para isso, o autor elabora 7 saberes fundamentais para a reforma do pensamento, que devem ser compreendidos e aplicados nas diferentes áreas científicas e sociais humanas, são eles: (1) saber que o conhecimento está propício ao erro; (2) o saber ligado ao conhecimento pertinente (inteligência geral); (3) saber se conhecer como ser humano multidimensional; (4) saber sua identidade terrena; (5) saber enfrentar as incertezas; (6) saber pôr em prática a compreensão; e (7) saber pôr em prática a ética do gênero humano.
Ainda, para Morin, há um oitavo saber essencial: a História.
Ensinar a história real, partindo de perspectivas que não são aquelas distorcidas em favor das conveniências da dominação e dos dominadores, é essencial para contextualizar o ser humano no tempo e no espaço. Nas palavras dele, no livro Reinventando a Educação: “Sem História não sabemos onde estamos, pois não sabemos nem de onde viemos, nem como chegamos até aqui. Consequentemente, sem história não podemos agir” (MORIN, DÍAZ, 2016, p. 70 e 71).
São esses saberes que pautam a reforma do pensamento e que, a partir deles, será possível construir o conhecimento em uma abordagem complexa a fim de compreender e agir no mundo.
Vamos explorar brevemente cada um desses saberes e, em seguida, destacar sua importância na superação dos desafios contemporâneos.
1 – As Cegueiras do Conhecimento: O Erro e a Ilusão
Reconhecer a propensão ao erro e à ilusão é, segundo o autor, o primeiro o para a humildade intelectual. Compreender que o conhecimento está sempre sujeito a limitações é algo crucial para evitar certezas absolutas (tão prejudiciais para a sociedade) e abrir espaço para uma compreensão mais ampla e complexa.
2 – Os Princípios do Conhecimento Pertinente
Morin destaca a necessidade de abordar o conhecimento de maneira contextualizada e interdisciplinar/transdisciplinar. A inteligência geral envolve a capacidade de relacionar diferentes áreas de conhecimento para uma compreensão mais holística da realidade.
3 – Ensinar a Condição Humana
Além da transmissão de informações, a educação voltada para a reforma do pensamento deve buscar desenvolver uma compreensão profunda da condição humana, incluindo aspectos emocionais, sociais e éticos. Isso contribui para formar indivíduos mais conscientes de si, do mundo e das relações.
4- Ensinar a Identidade Terrena
A consciência global e a identidade terrena compartilhada são essenciais para superar barreiras culturais. Morin propõe uma visão que valorize a diversidade, promovendo a compreensão da unificação do gênero humano, apontando que todos compartilhamos a mesma casa, a Terra (principal temática explorada em seu livro Terra-Pátria).
5 – A Ética do Gênero Humano
A ética global vai além das fronteiras culturais e nacionais, enfatizando a solidariedade e a responsabilidade para o bem-estar comum. Aqui é destacada a importância de considerarmos as implicações éticas em todas as ações humanas, promovendo e ensinando a dignidade e a justiça.
6 – A Necessidade de Lidar com as Incertezas
Em um mundo complexo, lidar com a incerteza é uma habilidade crucial. É preciso, para isso, ensinar a importância do pensamento crítico, a tolerância à ambiguidade e à contradição, ensinar a capacidade de enfrentar situações imprevisíveis e reforçar a necessidade de uma aprendizagem contínua.
7 – A Compreensão da Terra
Morin defende a importância e urgência de uma ecologia global, que compreende a Terra como um todo integrado e considera suas interações entre elementos naturais, sociais e culturais, uma perspectiva que vai além das preocupações ambientais, mas abrange uma compreensão mais ampla da biosfera e da civilização. Ainda, o autor destaca a importância de uma compreensão holística para orientar esforços de preservação e, ao adotar uma abordagem unificada, pode-se reconhecer a interdependência entre a saúde do planeta, a diversidade cultural e a prosperidade social.
É importante também estarmos abertos para ouvir ensinamentos ancestrais sobre a preservação e compreensão terrena, uma vez que muitas culturas indígenas têm em seu modo de vida e práticas cotidianas, uma compreensão intrínseca da interconexão entre a natureza, a sociedade e a cultura, alinhando-se com a perspectiva holística do pensamento complexo.
Por fim, a reforma do pensamento proposta por Morin é uma chamada para uma abordagem mais integrada e complexa diante dos desafios da sociedade contemporânea. Sua visão transcende o pensamento linear e fragmentado, incentivando a superação de fronteiras disciplinares em prol de uma compreensão mais abrangente da realidade.
Faz-se necessário apontar que essa reforma não se limita ao âmbito acadêmico; ela visa transformar a maneira como nos relacionamos com o mundo em todas as esferas da vida social. Incorporar os saberes propostos por Morin significa reconhecer a complexidade das interações entre diferentes elementos da existência e buscar soluções que integrem múltiplos saberes.
À medida que a sociedade evolui ao longo da história, sua complexidade se intensifica em vários níveis, como abordado ao longo do texto, portanto, a reforma do pensamento e das formas do saber se apresenta como uma necessidade emergente para lidar com a intricada teia de variáveis que caracteriza o mundo contemporâneo.
Em última análise, a importância do pensamento complexo reside na capacidade de transcender abordagens simplistas e dicotômicas, promovendo uma compreensão mais rica e integrada da realidade. A visão de Morin oferece uma bússola para navegar pelos desafios complexos do século XXI, permitindo-nos não apenas compreender, mas também agir de maneira mais eficaz e ética em um mundo intrinsecamente interconectado. Assim, a complexidade e a reforma do pensamento não são apenas ideias, mas ferramentas essenciais para construir um futuro mais consciente, solidário e sustentável.