Série Histórias de Vida: Das Marias que vieram antes para o mundo

Por Teresa Cristina
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A ancestralidade é viva — e pulsa no presente. O que Deusa Negra e Stephanie Filgueira têm em comum, além de serem jovens ativistas do MUDE com Elas, é o amor profundo e a inspiração que recebem de suas avós. De um lado, Maria do Carmo, líder comunitária no Grajaú, que lutou por moradia digna dos anos 70 até, infelizmente, falecer em 2018. Do outro, Maria Isabel, matriarca de uma família que nunca teve medo de lutar. Duas Marias, duas raízes, duas sementes lançadas à terra fértil da luta.

É seguro dizer que Deusa e Stephanie são motivo de orgulho para essas mulheres — até mesmo para quem já “ou desse plano”, como é o caso de Maria do Carmo. As duas são multiartistas e ativistas, formadas pelo e para o coletivo.

Deusa também é mãe e entende, na pele, a importância das redes de apoio. Para ela, poder demonstrar fragilidade é uma necessidade — afinal, para mulheres negras, ser forte é esperado e tido como natural. Ter espaço para sentir, falhar e pedir ajuda (e receber essa ajuda) também é um direito.

Já Stephanie é fundadora e líder de um hub criativo que funciona como uma rede viva de jovens mulheres negras, unidas para desenvolver e aplicar sua criatividade. Sempre em coletivo, sempre entre mulheres que se fortalecem mutuamente.

Essa é a essência do MUDE com Elas — e da mulheridade negra: caminhar juntas, sustentando umas às outras, de geração em geração.

Deusa Negra: divindade artista, de fé e poesia

“Eu não me reconhecia mais como artista. A maternidade me atravessou de um jeito que eu me sentia cuidando de tudo, de todos — menos de mim. Foi uma amiga que me olhou e disse: ‘você é uma divindade, você é uma Deusa Negra’. Aquele nome ficou. Era isso: um nome que me lembrava da minha força e da força das minhas, todos os dias.”

Deusa Negra
Além da escrita, Deusa Negra usa da música para se expressar. Créditos: Clandestina Jpeg.

Deusa (26) é multiartista, mãe e ativista, carregando o legado de Maria Isabel, sua avó, que acredita no poder da educação e da coletividade. “Minha avó é minha rede de apoio até hoje. Se não fosse por ela, eu talvez não tivesse conseguido me reconstruir como artista e mãe.”

Cresceu imersa em cultura popular, fé e poesia. Escrever foi uma forma de resistência durante a gestação, em uma relação marcada pela violência, e na busca por uma linguagem que abarcasse tanto o amor quanto a dor. “Escrever para minha filha Bella era o que me mantinha em pé.”

A falta de estrutura, a sobrecarga e a invisibilidade das mulheres negras nas esferas profissionais são temas centrais em sua arte. “Pra trabalhar, eu tinha que deixar a Bella com outra mulher preta da família. Isso não é justo.”

Nos empregos formais, enfrentou racismo e apagamento. E mesmo agora, vivendo da arte, a instabilidade persiste. “Só estou conseguindo porque tem edital, política pública. Se não fosse isso, não dava. O trabalho artístico não cabe numa tabela.”

Com essa bagagem, Deusa fundou e lidera o Coletivo Grave ao Groove, que promove formações e eventos culturais voltados à resistência preta nos territórios periféricos. Também frequenta e compete em slams — batalhas de poesia falada em que ecoam suas vivências e lutas.

No MUDE com Elas, encontrou um território seguro. “Ali eu me sinto cuidada. Eu vejo mulheres como eu, com histórias parecidas com a minha, que me fazem lembrar que eu não tô sozinha.” Deusa atua em incidência política nacional, com base na experiência da faculdade de Direito e participa do Grupo de Trabalho que assegura que a voz da juventude seja escutada e representada em todas as instâncias do projeto. É também onde pode sonhar junto — e continuar criando o mundo que deseja para si e para sua filha.

Stephanie Filgueira: direção criativa para mudar o mundo

“Sou 100% cria de projeto social. E não falo isso como algo menor. Pelo contrário: foi nesses espaços que encontrei afeto, força, propósito. Foi onde aprendi que a arte pode ser uma forma de reivindicar o mundo.”

Stephanie Filgueira

Stephanie (26) nasceu no Grajaú e cresceu entre ocupações e condomínios populares da zona sul de São Paulo. Criada por Maria do Carmo, avó ativista da luta por moradia, aprendeu cedo que estar no mundo exige posicionamento. “Quando percebi que a única forma de ar mais tempo com a minha avó era me engajar nas lutas dela, me envolvi.”

Stephanie é dançarina profissional de Hip Hop. Créditos: Juliana Santos

Iniciou sua trajetória artística com dança urbana, e logo expandiu seus estudos para o grafite, design gráfico e audiovisual. Hoje lidera o Stie Studio, um hub criativo que reúne jovens mulheres periféricas para trabalhar com arte, comunicação e cultura — sempre com propósito político. “Não é só fazer arte. É abrir portas, criar autonomia, compartilhar ferramentas.”

Como cresceu em ambientes marcados por afeto coletivo e escassez de recursos, Stephanie aprendeu que a coletividade é necessária para a sobrevivência. “A ocupação parecia uma grande aldeia. O cuidado era coletivo, a comida era coletiva. E foi isso que me formou.”

No Stie, Stephanie atua como mentora e facilitadora. Compartilha editais, ensina a preencher documentos, orienta processos. “A informação não chega para todas. E meu papel no projeto é garantir que ela circule.”

Ao conhecer o MUDE com Elas, quase não se candidatou. “Achei que não aria. Eu não tinha graduação ainda. Mas ei. E foi um dos poucos espaços em que minha vivência foi validada como potência.”

Hoje, integra a frente de trabalho que discute a permanência de mulheres negras no mercado, especialmente mães e cuidadoras. Para ela, a atuação política é uma forma de romper com padrões que marcaram a própria família. “As mulheres da minha família achavam que precisavam se casar com homens brancos pra ter dignidade social. Acabaram mães solo, muitas vezes vítimas de violência. Eu sabia que queria outro caminho. E esse caminho é coletivo.”

Duas potências, uma rede

Deusa e Stephanie trilham caminhos diferentes, mas bebem da mesma fonte. Ambas são frutos de Marias que vieram antes — mulheres que acreditaram que o mundo podia ser outro e plantaram as sementes da transformação. Hoje, seguem esse legado: criam, educam, cuidam, se organizam. São arte, são política, são ponte.

Este conteúdo foi produzido para o projeto MUDE com Elas – multiatores superando a desigualdade de gênero e raça, implementado a partir de uma parceria entre Terre des Hommes Brasil, Ação Educativa e CEERT, com cofinanciamento da Cooperação Alemã/BMZ.

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