Série Histórias de Vida: Kali e Duda, a luta plural das jovens mulheres negras

Por Teresa Cristina
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Jovens negras transformam exclusão em ativismo e arte em resistência. Esta série apresenta as trajetórias de 10 ativistas do MUDE com Elas que lutam por um mercado de trabalho mais justo.

Do telemarketing às pistas de Breaking, a luta por trabalho digno se revela em múltiplas trajetórias. Kali, demitida por denunciar racismo, transformou a exclusão em ativismo. Duda, que escreveu seu próprio roteiro profissional através da dança, mostra como a arte se torna resistência.

Esta série apresenta as dez jovens negras ativistas do MUDE com Elas, revelando como o projeto potencializou suas lutas por um mercado de trabalho mais justo. Na estreia, conheça Kali, que enfrenta o racismo estrutural, e Duda, que profissionaliza a cultura preta. Nas próximas semanas, descubra outras oito histórias de transformação.

Kali, a corintiana sem tempo para racista

Kali Rodrigues é ativa em coletivos sociais desde a adolescência. Créditos da imagem: arquivo pessoal.

Kali Rodrigues, 24 anos, é jornalista por formação, cria do Jardim Ângela, Zona Sul de São Paulo. Filha mais nova de cinco mulheres, foi criada pelos tios após perder a mãe ainda criança.

Desde cedo, aprendeu que dinheiro não se estica, mas a criatividade sim. “Fui uma criança que recebeu muitas doações de roupas”, conta. Estudou em escola pública e, no ensino médio, conseguiu uma bolsa em uma escola particular.

Sempre questionadora, se envolveu desde jovem em causas sociais, participando de atividades no centro comunitário do bairro, e mais tarde se engajou em causas ambientais, feministas e na Marcha da Maconha, além de coletivos antiproibicionistas.

Desafios no mercado de trabalho

Seu primeiro emprego formal foi como captadora de recursos para a UNICEF, abordando pessoas em shoppings e mercados. “Às vezes, não via lógica em pedir doações em lugares onde as pessoas mal tinham dinheiro para compras básicas”, lembra.

Depois, conseguiu um estágio em uma ótica em Santo André. Quando ia presencial, usava a bicicleta para economizar agem e juntar dinheiro para se mudar da casa dos tios. “Na pandemia, raspei a cabeça, e as pessoas me olhavam diferente.”

A experiência mais marcante e desafiadora, porém, foi em uma empresa de telemarketing em que sofreu racismo. Na época, usava tranças. Era um tempo frio então sua roupa do dia a dia era um moletom com capuz e touca. Um colega de trabalho “estilo alemão”, loiro dos olhos azuis, fez um comentário ofensivo sobre seu cabelo e roupa: “você faz parte de uma gangue agora?”.

Apesar de ter denunciado o caso, apenas Kali perdeu o emprego. “Entrei com um processo contra eles. Já estava mais politizada e sabia que não podia deixar ar.”

Nos 45 do segundo tempo, MUDE com Elas

Kali chegou ao MUDE com Elas nas últimas, quase perdeu o prazo da inscrição. Lembrou de checar o e-mail no último dia, no meio do mercado, entre um pacote de arroz e um sabonete em promoção. Participou de uma entrevista coletiva e se identificou com o projeto logo de cara.

Como mobilizadora e articuladora política no MUDE, Kali trabalha com questões como trabalho digno e direitos das jovens mulheres negras. “Aqui, há uma preocupação real com o bem-estar, não só com a entrega do trabalho. Acolhimento faz diferença, e eu percebi isso logo no primeiro encontro – lembro até do cuscuz com carne seca e manteiga de garrafa. Foi um acalento para o coração”.

Hoje, como autônoma, trabalha com audiovisual e turismo, mas não descarta a CLT. “Defendo a CLT, mas muitas empresas não estão preparadas para acolher pessoas como eu.”

Kali mantém seu jeito brincalhão e direto. “Sou corintiana, então luto o dobro”, diz, rindo. Sua trajetória reflete a resistência de muitas jovens negras e periféricas que buscam seu lugar no mundo do trabalho sem abrir mão de quem são.

No MUDE com Elas, ela encontrou um espaço onde sua voz é valorizada. “Aqui, eu me fortaleço e fortaleço outras mulheres. A gente não muda o sistema sozinho, mas em rede, a gente avança.”

Duda, a b-girl que usa arte como ferramenta de luta

Duda é atleta profissional de Breaking, esporte que se tornou olímpico em 2024. Créditos da imagem: Erick Novais

Aos 22 anos, Maria Eduarda — ou apenas Duda, como prefere ser chamada — carrega nos os de Breaking a mesma leveza e determinação com que trilha seu caminho como ativista.

Nascida e criada na Zona Leste de São Paulo, no bairro de Sapopemba, ela cresceu entre os projetos do CEDECA (Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente), onde descobriu cedo que arte e transformação social andam juntas.

O Breaking como resistência

Duda começou no ballet, ou pelo teatro e encontrou no hip-hop sua voz. “A arte foi minha primeira escola”, reflete. Aos poucos, deixou de ser apenas participante para se tornar educadora na biblioteca comunitária do CEDECA, onde ajudou a produzir revistas sobre literatura e direitos humanos. Essa experiência moldou sua escolha pela faculdade de Letras, que cursa com bolsa integral.

Assim como várias jovens negras, ela nunca atuou no mercado formal de trabalho. “Nunca me imaginei no CLT”, diz. Preferiu seguir projetos com bolsas no terceiro setor, onde une educação, cultura e ativismo. Aos sábados, dá aulas em um cursinho comunitário da UNE Afro.

Como dançarina de Breaking, Duda encontrou mais do que uma paixão: uma ferramenta de luta. “O hip-hop me ensinou a resistir antes mesmo de eu saber o que era ativismo”, conta.

Hoje, treina no Centro Olímpico de São Paulo como atleta da modalidade, que se tornou esporte olímpico em 2024. Participa de campeonatos estaduais e nacionais, mas ressalta: “Não danço só para competir. Danço porque é minha forma de existir.”

Em 2023, Duda ingressou no MUDE com Elas, projeto que ampliou seu olhar para as lutas específicas das mulheres negras. “Aqui, entendi que direitos humanos não são genéricos. Têm cor, gênero e CEP”, afirma.

Uma das experiências mais marcantes foi uma viagem a Brasília com o MUDE, onde debateu políticas públicas para jovens negras. “Ver como as decisões são tomadas me fez perceber que nossa voz pode — e deve — chegar lá.”

Atualmente, trabalha em dupla com Luane, de Mauá, para levar formação a mulheres negras da cena cultural. “Queremos mostrar que arte é profissão, e que elas têm direito a espaços dignos”, explica.

Duda não romantiza a luta. Sabe que os desafios são grandes, mas seu propósito é claro: “Quero garantir que outras jovens tenham as mesmas oportunidades que eu tive — não por caridade, mas por justiça.” Seu sonho? Ver mais meninas da periferia conhecendo seus direitos e ocupando espaços.

Entre os livros da faculdade, os treinos de Breaking e as reuniões do MUDE, Duda faz da própria vida um ato político. “Não separo a Duda artista, a estudante ou a ativista. Tudo é uma coisa só: resistência.”

Este conteúdo foi produzido para o projeto MUDE com Elas – multiatores superando a desigualdade de gênero e raça, implementado a partir de uma parceria entre Terre des Hommes Brasil, Ação Educativa e CEERT, com cofinanciamento da Cooperação Alemã/BMZ.

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